19 novembro 2009

O fundo de quintal macabro

Vivo em uma cidade industrial que esqueceu de suas lendas em nome do progresso. Todos os fantasmas que viviam na periferia não resistiram à especulação imobiliária, que transformou seus domínios em bairros comerciais ou residenciais. Não sei se foram assombrar outra freguesia ou se finalmente fizeram a passagem para o outro mundo, encontrando a sonhada paz.
O quintal da minha casa hoje está todo construído, assim como os terrenos adjacentes. Todo metro quadrado existente agora está cimentado e ocupado. Quando tinha uns doze anos, a coisa era bem diferente. Não havia muros separando as propriedades e tudo era coberto por um tenebroso matagal, que ficava ainda mais assustador nas noites de lua cheia.
Numa dessas noites, com a lua dando seu banho prateado nas folhas do mato e das árvores, que se agitavam com a brisa, regidas pela sinfonia dos cantos das aves noturnas, meu pai recebeu visitas e resolveu descontrair o ambiente com cerveja.
Eram os idos do século passado, não existiam garrafas pets, nem vasilhames descartáveis de vidro. As latinhas de cerveja eram feitas de aço e escassas. Quem queria comprar cerveja e refrigerantes, tinha que levar as garrafas vazias para trocar pelas cheias. Os supermercados e bares davam um bom desconto no preço com a troca, mas tinham que ser idênticas às das marcas pedidas, era ecologicamente correto, mas um verdadeiro enchimento de saco!
Sem poder desobedecer às ordens paternas, lá fui eu para o macabro, assustador, fantasmagórico e tenebroso fundo do quintal resgatar algumas empoeiradas garrafas de cerveja que serviam de morada para gerações inteiras de aranhas e baratas.
Logo ao chegar, o ambiente adquiriu aquele aspecto típico de quando algo inexplicável e inacreditável está prestes a acontecer. O tempo deu a impressão de ter parado, não havia sons de espécie alguma, nem brisa noturna, nada além dos meus passos e do atrito das garrafas movidas. O ar ficou pesado e ruim de respirar, me veio uma sensação fortíssima de estar sendo observado por todos os lados por algo que me odiava gratuitamente.
Pus várias garrafas em uma sacola e a sensação de estar sendo observado e muito odiado aumentou de um jeito insuportável. Nessa época, o nosso quintal estava recém-murado, mas tinha sido feito um portão nos fundos que dava para o tenebroso matagal. Era fechado por uma porta de tábuas, presa por uma dormente.
Quando me virei para ir embora levando a sacola, ouvi o portão ser escancarado violentamente, como se tivesse sido arrombado por algo muito forte, e uma lufada de vento quase me ergueu no ar. Não olhei para trás, mas ouvi alguma coisa correndo, ou cavalgando, velozmente em minha direção vinda dos recônditos do matagal, o som parecia de passos pesados ou de cascos, não tenho certeza, mas me perseguia e não estava bem intencionada, como meus instintos diziam.
Senti o troço chegando perto e acho que já tinha passado pelo portão escancarado para cair em cima de mim. Sem olhar para trás, segurei a sacola e corri desesperado.
Foi um daqueles casos em que outra parte de nossos cérebros assumem o controle e sabem exatamente o que fazer e esse meu instinto não me deixou ficar e nem olhar para trás.
Cheguei na cozinha, gelado e trêmulo. Por sorte, meu pai estava tão distraído com o papo-furado que nem notou. Me deu o dinheiro e pediu para não demorar.
Comprei as cervejas e tentei refletir sobre o que houve, mas até hoje não acho explicação. Jamais saberei o que teria visto se olhasse para trás, ou o que teria acontecido se tivesse ficado, o estranho é que, no dia seguinte, o portão estava fechado com a dormente, tudo em seu devido lugar como se nada tivesse acontecido.

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